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Uma abordagem
Por Alcir Santos
“4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais:
os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais;
a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez;
e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.”
(Do Voto Vista do Min. Barroso – HC-STF-134206-RJ)
Não é o caso de discutir se é uma questão de genética ou herança cultural. Poderia ser o tal instinto materno.
Num dos verbetes do #Aurélio, “instinto” é definido como sendo as “forças de origem biológica inerentes ao homem e aos animais superiores, e que atuam, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e independentemente de qualquer aprendizado.” Parece ser inata, na maioria das mulheres a vontade de ser mãe. A impressão que fica para o observador é que há uma espécie de força poderosa que as move nessa direção.
Há muitos anos, numa das galerias de arte do #TeatrodaPaz, em #Belém, visitamos uma exposição de fotos que tinha como tema maternidade e aleitamento. Uma delas, pela força que transmitia, cravou-se para sempre na memória. O fotógrafo conseguiu captar a troca de olhares entre mãe e filho no momento da amamentação. A força que havia naqueles olhos era de uma intensidade ímpar. Não dá para descrever. Um momento único de puro sentimento!
Maternidade é, sem dúvida, um tema que comporta ampla e profunda discussão. Aqui não é o foro adequado para tanto.
Limitamo-nos a registrar alguns fatos, emitindo opinião muito pessoal. A exemplo, duas amigas, em momentos diferentes, maiores de quarenta e uns, decidiram que não queriam ser mães. Realizadas profissionalmente, resolvidas e respeitadas nos respectivos círculos sociais, tocavam a vida sem maiores problemas até que foram surpreendidas com a necessidade de uma histerectomia. Até aí, tudo bem. Ninguém discute força maior, ainda mais em matéria tão delicada. O problema viria depois. Quando se deram conta da impossibilidade de ser mães, entraram em parafuso e tiveram dificuldade para superar a questão. Não foi fácil. Felizmente, deram a volta por cima.
Verifica-se, portanto, que existe, sim, uma força poderosa. Talvez as duas guardassem no subconsciente a certeza de que estavam no comando. A decisão de não parir poderia ser revertida por um simples ato de vontade. As cirurgias mudaram a equação. Tinham perdido o comando. Agora, havia uma impossibilidade orgânica, física. Aí bateu a frustração.
Bem, até aqui tentamos sustentar a premissa de que as mulheres são naturalmente inclinadas para a maternidade. Noutras palavras, ser mãe seria uma espécie de apanágio das mulheres. Esta condição inata tanto pode ser decorrente de fatores orgânicos como sociais; ou dos dois. Por força de variáveis outras, algumas delas estariam imunes a tal contingência. Nada demais.
Daqui em diante, como corolário dessa premissa, vamos tentar abordar um ângulo diferente de uma questão tormentosa, qual seja o aborto. Sim. De modo geral, essa questão é abordada sob a ótica da religião, da saúde pública e do direito. O pior disso tudo é que não se vê uma discussão equilibrada.
Normalmente, as paixões afloram e um assunto de tamanha importância para a sociedade como um todo e para os envolvidos, em particular acaba sendo tisnado pelo radicalismo e pela emoção, sabidamente péssimos conselheiros. Pior: esquecem de considerar o mais importante, a dor da mulher que se submete – ou é submetida – a um aborto.
Um dos mais tocantes textos escritos sobre essa matéria é Carta a um Menino que Nunca Nasceu, publicado em 1975, da extraordinária #OrianaFalacci, relato emocionante de uma mulher que engravidou por acaso, foi aconselhada a abortar, considerou a possibilidade, decidiu não fazê-lo, mas acabou abortando espontaneamente. Aliando o texto da inesquecível jornalista com as informações que temos no dia-a-dia, dá para afirmar, com ínfima margem de erro, que não há mulher que consiga sair intata desse processo.
Por tudo isso, vale reler um trecho do livro:
Coragem, menino. Julgas que a semente de uma árvore não precisa de coragem quando penetra a terra e germina? Basta um golpe de vento para a arrastar, a patita de um rato para a esmagar. E no entanto, ela germina e resiste e cresce e dá novas sementes. E torna-se floresta. Se algum dia gritares: ‘Por que me lançaste ao mundo, por quê?’, responder-te-ei: ‘Fiz o que fazem e fizeram as árvores, durante milhões e milhões de anos antes de mim, e cuidei de fazer bem.
Oriana Falacci
Dia desses, ouvimos alguém afirmando que as mulheres choram antes e depois. Não há como ser diferente tamanha a sua violência e brutalidade. Ninguém aborta porque quer. O aborto, como o suicídio, é uma contingência, um processo ao qual ninguém pode afirmar estar imune. A decisão é tomada sob a pressão de uma conjunção de fatores que acabam por fragilizar a mulher, tornando-a indefesa.
Uma decisão pessoal, é verdade, mas viciada pelo desespero e pela dor das circunstâncias. É exatamente isto que queremos considerar.
A criminalização do aborto é um crime maior; não leva em conta as circunstâncias em que ocorre. O furor religioso só faz agravar o sofrimento. A discussão sobre o direito de dispor do próprio corpo também não vai levar a lugar algum. Importa, isto sim, respeitar a dor da mulher. Atirar pedras e pespegar rótulos é muito fácil. Difícil é tentar fazer um processo de empatia para entender como uma pessoa busca solução tão extremada e violenta. Não é uma questão de apoiar ou não apoiar. É mais profundo.
Como não se pode pretender impedir que ocorra – já que não é fruto da vontade de uma pessoa, mas de um conjunto de causas extrínsecas de ordem social, educacional, financeira e moral –, resta-nos ser solidários. Isto não quer dizer apenas abraçar, dar o ombro e chorar junto, mas compreender e ajudar para que as mulheres que abortaram possam se reerguer e tocar a vida, embora guardem para sempre consigo uma profunda dor.
Dentre os casos de mulheres nessa situação, com quem tivemos oportunidade de ouvir, conversar, abraçar, houve um que ficou gravado. Ainda mocinha foi trazida do interior, sob o velhíssimo argumento de que, na Capital, teria oportunidade de estudar e “ser alguém”. Para variar, acabou escravizada, estuprada e engravidada. Se foi o patrão ou o filho, não teve como saber. Acabou abortando e posta de casa fora.
Tempo passou, vida mudou, encontrou o companheiro que a acolheu e passaram a viver juntos. Mas ele queria ser pai. Ela não conseguia engravidar. Quando conversamos, chorando desesperada, dizia que era castigo de Deus porque, lá no passado, havia abortado. De pouco adiantou, acreditamos, o abraço firme, o ombro para acolher e as palavras de conforto e consolo.
A realidade, é assim. Muito dura!
“5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como conseqüência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. “
(do voto do Ministro Barroso)
Alcir Santos é aposentado e leitor compulsivo. Coisa ele diz: “ex um bocado de coisa”, de office-boy, bancário, professor de História e Direito Civil e Prática Forente a juiz. Colunista da Revista Nova Família
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2 thoughts on “O aborto”
Parabéns Dr. Alcir como sempre mais uma materia muito importante, bem elaborada. Muitas vezes o aborto é praticado pêlas circustância em que a mulher se encontra, não sou a favor do aborto mais se é para trazer ao mundo uma criatura e largar para atoa sem nem mesmo poder alimenta-lo para mais tarde ter mais um ser na criminalidade, melhor abortar para que no futuro não venha a prejudicar a si e a comunidade.
*Aborto*:Vida, existência, pressão social, fator social, emocional, financeiro, religioso, familiar … O homem tido moderno, “evoluído” prova a cada dia que ainda não estão humanizados o suficiente para tratar desse tão relevante assunto que vai além de um conceito ou opinião. Não é apenas uma decisão e sim dos seus efeitos adversos na vida da mulher/Mãe. Efeitos colaterais imprevisíveis e ou benefícios impensáveis em relação á decisão acertada dentro do eu de cada uma… Dr. Alcir, Parabenizo-o por trazer este tema digno de reflexão.