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Do que são feitas as memórias?

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São fragmentos que contam as nossas próprias histórias

Por Adriana do Amaral

Hoje eu vou falar do meu tio Gerson, que também é Benedito, o 9º filho de Vitória e José Vicente Biscaro. Cirurgião dentista que preferiu ser professor. Lembro-me da sua presença na minha primeira infância, mas sempre ao lado das minhas irmãs e primas mais velhas.

Eu o adorava, como a gente gosta dos tios mais jovens, e ao mesmo tempo fugia dele, quando vestido de branco e cheirava à medicamentos odontológicos. Sempre tive medo de passar pelo consultório, que ficava entre a minha casa e a casa do meu avô, e ser puxada por ele para tratar dos meus dentes. Vestido como “gente normal” ele era perfumado e bem vestido.

Chamava de Tuca. Eu nunca fui sua sobrinha preferida, mas ele era atencioso comigo.

A ultima vez que o vi, pouco antes de ser decretada a #pandemia, ele apareceu na nossa casa, de surpresa, quando conversamos durante horas. Não aceitou nada, apenas água. Como estava perdendo a audição, e não usava smartphone e sim um celular antigo, a comunicação era dificultada.

Antes disso, encontramo-nos no hospital. Meu tio estava envelhecido, não era mais o galã por quem as moças se apaixonaram nos anos 1970/80. De vez em quando visitava a parentada, no interior, e ocasionalmente nos encontrávamos. Era um homem independente e prezava a sua intimidade, mas o amor sempre esteve lá, permeando a nossa relação.

Não sei dizer se solitário, pois adorava estar entre as mulheres que se encantavam pela gentileza com que ele as tratava. Aos poucos, percebi que ele passou a me respeitar também como adulta. Tentei lembrar sobre a personalidade dele e foi fácil compilar os relatos: adorava baile, teatro, cinema, caminhar por São Paulo…

Tentei puxar da minha própria memória algo que fosse exclusivamente meu e dele. Lembro-me de que, quando adolescente, eu costumava fazer dois furos numa lata de leite condensado e deixar o líquido grosso e branco cair sobre uma colher de sopa, vagarosamente, e depois sorver o conteúdo. Ele devia achar aquilo “pecado capital”, dentista que era.

Nunca me criticou diretamente, mas repetia: comendo “ranho de velha”, Tuca?

Talvez, para desestimular o consumo excessivo de açúcar. Toda a vez que uso o produto -hoje em dia raramente- lembro-me dele…

Um dia, tio Gerson disse à minha mãe: quero morrer antes das minhas irmãs.

Daqui a pouco irei me despedir da matéria que um dia foi um príncipe. Tio Gerson é imortal, mas como eu queria poder tê-lo vivo mais um pouquinho.

Nota da autora:

Dedico este texto a todos os que se foram nos últimos dois anos, sem despedidas, sem consolo; e as que ficaram sem o abraço trocado.

ramalhete feito com uma pedacinho da planta do jardim da vó Vitória

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