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O desequilíbrio nas relações de trabalho

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Em todos as redes e veículos de notícias, o Quiet Quitting, ou Demissão Silenciosa, se tornou um dos assuntos mais falados da última semana.

O termo foi cunhado no Tiktok, quase sem querer, mas é um termo bem ruim para explicar o que realmente está por trás da ideia.

Quiet Quitting não tem nada a ver com se demitir. Esse é um nome acidental, mas que agrada gestões abusivas e choca empresários acostumados a pagar o mínimo possível pelo máximo de esforço dos funcionários.

Antes de entender o que realmente está por trás dessa ideia, é preciso olhar atentamente para alguns números:

Segundo a American Psychology Association, numa pesquisa englobando 1501 adultos trabalhadores dos Estados Unidos, 79% dos entrevistados afirmaram ter passado por estresse relacionado ao trabalho no mês anterior à pesquisa.

Ainda na pesquisa, 3 a cada 5 trabalhadores afirmaram sentir impactos negativos relacionados ao estresse no trabalho, incluindo falta de interesse, motivação e energia (26%) e falta de esforço no trabalho (19%).

Enquanto isso, 36% dos entrevistados reportaram cansaço cognitivo, 32% apontaram exaustão emocional e 44% disseram sentir fadiga física.

Todos esses números são sobre uma doença ocupacional chamada Burnout, um estresse crônico relacionado ao trabalho que não recebeu os devidos cuidados.

No Brasil o prognóstico também não é bom. Ocupando a segunda posição como país mais afetado pelo estresse no trabalho, 1 em cada 3 brasileiros sofrem de burnout em algum grau.

É neste panorama que algumas mudanças de comportamento acabaram se desenvolvendo.

Essa é a raiz de uma forma diferente de enxergar o trabalho.

Apesar de burnout ser o termo amplamente utilizado, deste ponto em diante usarei a palavra esgotamento. Acredito que a adoção do termo em inglês ainda causa um distanciamento do verdadeiro significado da doença.

A identificação do quadro de esgotamento em trabalhadores não é nada novo. A palavra foi utilizada pela primeira vez ainda nos anos 70, pelo psicólogo Herbert Freudenberger e utilizada para descrever o estresse crônico relacionado ao trabalho.

Mas existem relatos ainda mais antigo, que não se apoiam no termo, mas descrevem um modelo de trabalho que consome toda energia de uma pessoa e a impede de desfrutar das suas necessidades humanas mais básicas.

Este trecho, que já utilizei em outros textos, foi publicado em 1854, na obra A Vida nos Bosques de Henry David Thoreau:

A excessiva lida torna-lhe os dedos demasiado trêmulos e desajeitados para isso. Na realidade, o trabalhador não dispõe de lazer para uma genuína integridade dia a dia, nem se pode permitir a manutenção de relações mais humanas com outros homens, pois seu trabalho seria depreciado no mercado.

É importante destacar, tanto que o termo específico já existe há mais de 50 anos, assim como há relatos de quase 200 anos atrás apontando relações de trabalho que levam humanos à exaustão, movidos pelo medo de perder seu sustento.

Devem existir relatos ainda mais antigos, mas as informações que trago aqui já são suficientes para entender que o problema não é novo. Que não é uma moda de uma tal “Geração Z que não gosta de trabalhar“.

Inclusive, vale pontuar que existe uma histórica relação entre dizer que “ninguém quer mais trabalhar”, ao mesmo tempo que trabalhamos cada vez mais horas do nosso dia.

Acusar a atual geração profissional de preguiçosa, por exigir melhores condições de trabalho e salários mais dignos, sempre foi um ataque vindo de quem mais se beneficia dessa relação.

Agora adicione a essa equação 2 anos de uma pandemia global sem precedentes, impactos psicológicos ainda pouco conhecidos e uma pressão por escala e lucro nunca vistas antes.

Pela primeira vez na história recente, o trabalho e a vida pessoal se entrelaçaram de uma forma indissociável. O trabalho que ao fim do dia ficava nos escritórios, fábricas ou estabelecimentos comerciais, agora te acompanha de volta para casa dentro da sua mochila e do seu bolso.

Mais ainda, devido às restrições necessárias para conter a pandemia, sua própria casa passou a ser o local de trabalho.

Sabendo disso, as demandas das empresas começaram a aumentar. Pedidos fora do horário foram se tornando cada vez mais comuns. Agora que você pode fazer todo seu trabalho em casa, não vai se importar de interromper seu jantar para enviar um relatório para o gestor apressado mandando mensagens no seu celular pessoal.

Mais ainda — principalmente para pessoas mais solitárias — levar o computador para a cama e adormecer realizando atividades do trabalho e, no dia seguinte, acordar trabalhando antes de se levantar não é raro.

A pesquisa conduzida pela Universidade do Sul da Califórnia (USC) constatou que a maioria das pessoas que migrou para o home office durante a pandemia teve problemas de saúde devido à mudança. Cerca de 64% tiveram problemas físicos, e 75%, mentais. Para o estudo, foram analisadas cerca de mil pessoas, que, entre o fim de abril e início de junho, responderam a uma série de questionários referentes ao impacto do home office no bem-estar físico e mental.

É diante desse quadro que vemos pessoas, em grande parte jovens, optando por tirar o pé do acelerador. Entendendo que os riscos que estão se submetendo não compensam os resultados alcançados.

É normal e bem compreensível, que uma geração neste ponto comece a entender que talvez seja importante priorizar — em algum grau — sua própria saúde.

A noção inicial do Quiet Quitting é exatamente o reflexo de tudo isso. São pessoas que decidiram colocar um limite na sua atuação profissional para se esquivar do esgotamento.

Mas existe muito ruído ainda no que essa ideia quer dizer.

Originalmente chamado de “Quitting-in-place” ou “Desistir-sem-sair-do-lugar”, no livro Skirt! Regras para o local de trabalho: O guia irreverente para avançar na sua carreira, de 2008, a autora Kelly Love Johnson relata sua própria experiência.

Após anos trabalhando à exaustão numa empresa de tecnologia, Johnson viu sua motivação desaparecer. Ela continuou indo ao trabalho normalmente, mas seu desejo de ir cada vez mais longe desapareceu.

Uma vez que eu desisti mentalmente, ninguém reparou. Eu aplicava 50% menos esforço, fazendo apenas o que era minha obrigação, e ninguém notou. Eu continuei sendo promovida e recebendo aumentos.

Vale notar que a ideia, nem de longe, sugere fazer um trabalho de má qualidade ou não entregar o que está combinado. A ideia original é fazer o que precisa ser feito, mas não se matar por atividades que, muitas vezes, nem fazem real diferença.

A ideia do Quitting-in-Place reapareceu em março deste ano numa reportagem, que inspirou o primeiro uso conhecido do termo Quiet Quitting, de forma acidentalpelo coach de carreira Bryan Creely.

Depois que as postagens de Bryan viralizaram, uma série de opiniões de empresários começou a ecoar pela mídia. Agora tentando ressignificar para dizer que “a pessoa não está desistindo apenas do trabalho, mas desistindo de sua própria vida.”

Kevin O’Leary, empresário conhecido por programas de empreendedorismo para a televisão, como o Shark Tank, chegou a dizer que a ideia vai contra os valores e tradições americanas.

Cabe aqui a ironia de apontar uma pessoa que decidiu poupar a própria saúde, evitando um quadro comum e que pode desencadear doenças graves e até a morte, como alguém desistiu da própria vida por abandonar a ideia de trabalhar até o esgotamento.

O próprio duplo sentido que vem sendo empregado ao termo, como se a pessoa estivese fazendo de tudo para ser demitida, mas sem a coragem de sair do emprego, é só mais um reflexo da tentativa de forçar a aceitação de uma cultura de trabalho que se importa apenas em explorar o máximo de mão de obra, pelo máximo de lucro.

Somente numa cultura completamente distorcida, como vivemos, cabem empresários reclamando de pessoas que querem cumprir exatamente o que está definido no contrato de trabalho.

É o mais clássico caso da assimetria de forças entre patrão e empregado:

Eu posso exigir tudo de você, mas você não espere mais do que o contrato de mim.

Será que também podemos dizer que um empresário que não paga bônus mensais para seus funcionários está fazendo um “silent firing“, por não fazer nada positivo além do que está descrito no contrato?

Ou simplesmente quando não entrega um claro plano de carreira, não promove participação nos lucros ou dá um aumento real acima da inflação por anos, é demissão silenciosa?

Esse empresário está tentando fazer com que você saia da empresa sem ter coragem de te demitir?

Por que é tão confortável exigir que o trabalhador faça horas extras não remuneradas, favores que vão além da sua obrigação profissional e realize tarefas nos seus dias de folga?

No entanto, diante de qualquer atraso ou falta, seja lá por qual motivo, o contrato é trazido à mesa para justificar descontos no salário ao fim do mês.

Quem nunca ouviu de um gestor, depois de alguma ação que prejudicou o funcionário, dizer:

O combinado não sai caro.

Esse embate sempre foi vencido pelo lado mais forte, sabendo que existem milhões de pessoas em situação de desespero e dispostas a assumirem as posições mais humilhantes em troca de sustento.

É compreensível, diante de tudo isso, que as pessoas busquem posturas profissionais que exijam cada vez menos envolvimento emocional com o trabalho.

Faz sentido tentar desacelerar um carro desgovernado prestes a bater.

Todo esse alarde vem sendo criado por empresários que não querem buscar soluções para rotinas profissionais mais saudáveis, melhores remunerações e outros elementos que colaboram para a qualidade de vida do funcionário.

Um trabalhador com a saúde mental em dia, contas pagas e satisfeito com sua remuneração, dificilmente apresentará resistência caso precise resolver um problema pontual após o horário habitual.

É claro que algumas empresas já entenderam que focar na qualidade de vida e saúde mental dos funcionários é revertido rapidamente em produtividade e qualidade. Esses investimentos evitam erros e acidentes que custam bilhões todos os anos.

No entanto, alguns empresários continuam achando aceitável exigir rotinas exaustivas dos funcionários em troca de horas trabalhadas numa planilha.

Brian Creely, que impulsionou a popularidade atual do termo Quiet Quitting, diz suspeitar que fazer apenas o que precisa ser feito, sem se matar além da conta, é uma atitude que existe há muito mais tempo, mas ninguém ainda tinha dado um nome.

A parte boa de tudo é isso, é que ao desistir de dar tudo de si por um lugar que não reconhece seu esforço, ninguém de fora é capaz perceber. Desde que o importante esteja feito, ninguém terá um motivo real para reclamar da sua conduta profissional.

Pessoas podem continuar cuidando da própria saúde e seguindo suas vidas, sem que seus patrões descubram o que realmente pensam sobre seu trabalho.

Lembrando que tudo isso não é uma questão de fazer um trabalho mal feito ou deixar de entregar as atividades combinadas, mas de fazer apenas o suficiente para manter seu emprego.

Enquanto empresários vão às redes sociais mostrar sua revolta com o assunto, mais trabalhadores entendem essa realidade e seguem no seu silencioso pacto de forçar relações de trabalho mais justas.

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