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O Outono da Vida

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Elucubrações

Fotos: Carlos Monteiro

Por Alcir Santos

Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.
Rindo e cantando, célebres, ufanos,
Vamos marchando descuidosamente;
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

De repente, não mais que de repente, solerte e silencioso, o corpo começa a dar sinais de que um novo tempo está chegando. Pernas e braços, principalmente, começam a recusar obediência ao comando do cérebro, até para um esforço pouco maior, como subir uma escada. Chegam também os sinais externos, as temíveis rugas, indeléveis nas mãos e no pescoço. 

Ah, verdade. O cérebro também começa a cometer pequenos deslizes.

De súbito, em meio a uma conversa, a uma exposição, falta uma palavra, um termo técnico, um nome. Concomitantemente, chegam as dores que se arvoram a condição de companheiras de todas as horas; algumas mais intensas, outras mais toleráveis, mas o fato é que vieram para ficar, companheiras desse tempo novo.

É o outono da vida que chega, impondo mudanças e transformações. Muita coisa, especialmente na parte física, se resolve, ou apenas ameniza, com as onipresentes maravilhas criadas pela indústria farmacêutica. Alguns mais, outros menos, o fato é que qualidade de vida agora passa necessariamente por medicamentos.

É o tempo da “dependência química”. Atividade física também ajuda a manter o organismo funcionando. Mas não há que lamentar.

A vida oferece um sem número de opções e alternativas. Basta que cada um saiba escolher atividades compatíveis com a sua condição. Tem muita coisa boa para fazer e aproveitar.

É nesta fase, no outono da vida, que o senso crítico se torna mais agudo; desenvolve-se a perspicácia e a atenção. Verdade que já não se tem o fogo do verão, arrebatador, incendiário.  Afinal, outono é o tempo do recolhimento, do amadurecimento dos frutos.

Tempo de aceitar perdas para continuar crescendo, de fazer sacrifícios — sacrifício aqui no sentido etimológico, sagrado ofício,ação de caráter sagrado, transcendente, que vai além do corriqueiro. Tempo de refletir, livrar-se de conceitos e pré-conceitos, aceitar e assimilar os valores que surgem, sem rancores e falsos moralismos.

Aí é que entra o exercício e a prática da complacência e da tolerância, pois elas é que vão ajudar a interagir com os mais jovens, seus costumes e suas práticas. Querer impor valores, repudiar comportamentos, ser dono da verdade, do certo e do errado, é caminho seguro para o isolamento.

Ser tolerante e complacente pode ser uma arma contra a solidão que a todos apavora               

É preciso não esquecer que, se o outono da vida é um tempo de dores, é também tempo de celebrar, especialmente para essa geração rica, em vivência e experiência que viu mudanças e acontecimentos antes impensados e únicos na história da humanidade.

Exemplo? A penicilina, o homem na lua, a pílula, a queda do muro e o fim da guerra fria, o feminismo, as mulheres abrindo caminho e conquistando espaços antes inimagináveis, televisão, internet, consciência da ecologia, defesa do meio ambiente, respeito aos direitos humanos e a diversidade, e mais, muito mais. A longevidade resulta não só dos avanços da medicina, mas também de práticas de higiene, saneamento, alimentação etc.

O outono da vida é também tempo de reflexão sobre alguns comportamentos repetitivos que acabam por inibir o real potencial criativo das pessoas. Pode ser o momento de tomar consciência e assumir uma atitude positiva, desapegando-se de coisas que já não servem ou não ajudam, até porque podem impedir o caminho rumo às próximas estações de crescimento. Só assim é possível ir amadurecendo, até que seja o momento da colheita.

Tempo de refletir sobre os pesos desnecessários que atrasam a jornada e deles se desapegar, deixando-os ir. Tempo de, leve e solto, tocar a vida adaptando-se ao próprio corpo e ao ambiente em volta. Tempo de festejar o que se tem, sem lamentar o que se foi na poeira das muitas estradas percorridas.

Agora o trecho percorrido é muito maior que o a percorrer

No balanço da vida, restou mais passado e menos futuro. Outono é o tempo de abrir cuidadosamente os escaninhos da memória e deixar vir à luz as lembranças. Lembranças de momentos vividos, de pessoas queridas.

Tempo de cismar, tempo de reviver.

Assim meio por acaso, de surpresa, uma música, um aroma, uma comida, um local, um livro, qualquer coisa deflagra o processo, abre uma caixinha e dela afloram as recordações, não raras vezes revestidas de saudade. Engana-se quem rima saudade com dor.

Nada disso. Saudade rima com idade, mas tem tudo a ver com olhos brilhantes, sorriso, coração aquecido e até, sabe, alegria.

De repente numa caixa esquecida fotografias, algumas esmaecidas, deflagram um vórtice de recordações. Retalhos que formam a colcha da vida.

Aqui colegas de colégio que sumiram nas esquinas da vida; ali um amigo da juventude, com quem se dividiu praticamente tudo e que se foi tragado por um redemoinho; acolá registros da família, um caleidoscópio; filhos nas suas diversas idades. E mais lembranças de locais, eventos, situações. Algumas fazem desabrochar o riso, outras trazem a saudade. Ah, também tem fotos dos amigos. Dos que se foram, dos que seguiram outros rumos pelas estradas, curvas e esquinas da vida.

O coração aperta. Com razão o poeta:

Cada um que passa em nossa vida,  passa sozinho, mas não vai só, nem nos deixa só.

Leva um pouco de nós, deixa um pouco de si.

O outono da vida é tempo de levantar o balanço. Fazer ressurgir, ainda que fugazmente, a importância daquelas pessoas, das que chegaram e se foram e das que ficaram, todas ajudando a escrever capítulos da vida. A saudade dos que se foram até conforta, mas, de alguns, fica o sentimento de que a gente deixou passar a oportunidade de dizer a elas o  quanto foram queridas e importantes.

Então, nós enxergamos claramente

Como a existência é rápida e fala,

E vemos que sucede, exatamente.

O contrário dos tempos de rapaz:

-Os desenganos vão conosco à rente.

E as esperanças vão ficando atrás.

Padre Antonio Thomaz
Alcir Santos
Foto: Arquivo Pessoal

Alcir Santos é aposentado e leitor compulsivo. Coisa ele diz: “ex um bocado de coisa”, de office-boy, bancário, professor de História e Direito Civil e Prática Forente a juiz. Colunista da Revista Nova Família

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