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A comilança da Sexta-Feira da Paixão

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Foto: Adriana do Amaral

Por Alcir Santos

Então estamos combinados. Com o apoio decisivo de dois queridos amigos e parceiros de leituras, um do norte (PA) e outra do sul (PR), vamos deixar o escritor #ChicoBuarque em merecido repouso. Assim, fica preservado o extraordinário compositor capaz de coisas como a crítica social bem ácida de Geni e Meu Guri, a proeza de colocar um palavrão como “paralelepípedo” numa letra de samba sem perder o rumo nem o ritmo e, ainda, de interpretar a alma feminina de uma forma tão profunda que até as mulheres se assustam.

Lembro que, no fim da década de 1970, quando foi encenada, no #RiodeJaneiro, a #ÓperadoMalandro, com #ElbaRamalho e #MarietaSevero cantando em dueto a impagável O Meu Amor, conversávamos em grupo sobre a sensibilidade feminina de Chico. Uma das mulheres da roda explicou que as descrições eram perfeitas e que nós homens jamais seríamos capazes de entender; falou especificamente sobre a parte do “E de pousar as coxas entre as minhas coxas/quando ele se deita”, assegurando que a descrição era tão intensa, tão profunda, que explicitava exatamente o que ela sentia em situações que tais.

Saindo desse sutil e delicado tema, mas ficando no mesmo autor, cabe destacar a intensa carga de emoção que #ElzaSoares consegue transmitir quando interpreta Meu Guri. Sem dúvida, uma das mais impactantes apresentações que tivemos oportunidade de ver num palco. Portanto, o negócio é guardar o escritor e preservar o compositor. Combinado?

Agora, uma questão que submeto a todos na procura de uma resposta já que as pesquisas feitas não me levaram a lugar nenhum. O #CódigodeDireitoCanônico (Codex Iuris Canonci) estabelece, no seu art. 1.251, com redação dada no papado de #JoãoPauloII, que serão guardados jejum e abstinência na #QuartaFeiradeCinzas e na #SextaFeiraSanta.

Pois bem, desde que me entendo por gente que aqui na Bahia, especialmente no litoral e regiões próximas, que a Sexta-Feira Santa é um dia em que as famílias se reúnem em volta de uma mesa bem farta para um regabofe de causar inveja a Pantagruel. É uma festa tão arraigada nos costumes locais como o #Círio em #Belém.

Como lá no Pará não pode faltar o pato no tucupi, aqui na Bahia não pode faltar bacalhau, que, diga-se, é democrático já que tem para todos os gostos e bolsos. Na mesa, só tem uma ausência: a carne. Fora daí, arma-se um espetacular banquete onde não faltam moquecas (de peixe, bacalhau, marisco), vatapá, caruru, feijão de côco, efó e, claro, vinho tinto; na sobremesa, vale tudo, tortas, sorvetes, frutas, compotas e bolos.

Costumo ficar na sacada para apreciar as pessoas chegarem aos prédios trazendo pratos, bandejas e garrafas, que serão devidamente incorporados ao repasto da casa aonde se dirigem. Vejam que – estamos tratando de litoral da Bahia – o cardápio é bem baiano, com forte predominância do dendê. Um parêntese: a moqueca é o prato universal por excelência; é o único que leva, na composição, óleos de três continentes: o de palma (dendê), da África; o de côco, da Ásia; e o de oliva, da Europa. Se incluirmos o amendoim, o coentro, o tomate, o pimentão, a cebola, temos então num só prato quase todos os continentes reunidos.

De volta à indagação: se o Código Canônico preceitua a abstinência, de onde veio esta adorável tradição que parece estar em total desacordo com a orientação da Santa Madre? Notem que este é um costume típico e próprio das famílias de orientação católica. Até onde posso me lembrar, só não participei desses regabofes nos idos tempos de coroinha e seminarista porque, então, tínhamos os dias cheios de atividades intensas e só bem tarde da noite é que podíamos comer com a calma que tal ato exige, mas aí estávamos mortos de cansaço.

Quando saímos da Bahia, mesmo sem pruridos bairristas e com grande capacidade de assimilar os costumes locais, levamos conosco esta tradição sem deixar de incorporar as locais. Em Belém, honrávamos, com comida baiana, a Sexta-Feira Santa e, na melhor tradição do pato e da maniçoba, o Círio de Nazaré. No caso do Círio, íamos como convidados para a casa de amigos.

Hoje, não seguimos qualquer orientação religiosa, mas fazemos questão cerrada de preservar esses costumes. Aqui em casa hoje, cumpre a tradição. Nada de carne. Somente uma mesa forrada dos acepipes tradicionais. Outra coisa tradicional é o vinho: quando criança, davam-nos vinho tinto com água e açúcar enquanto os adultos bebiam normalmente. Eram os tradicionalíssimos Sangue de Boi e Capelinha? Não lembro.

Ah, lembro-me de outra tradição pitoresca que não sei se ainda persiste, mas que era a cara da minha juventude. Falo do “baú fechado”, de que #JorgeAmado tratou em mais de uma oportunidade. (Note que a greve descrita em Tereza Batista Cansada de Guerra teve outra razão.) Pois bem, a partir da meia-noite da quinta-feira e até um minuto depois da meia-noite da Sexta-Feira da Paixão, as “moças” ficavam indisponíveis, cumprindo a sacrossanta tradição da abstinência da carne (aí em sentido lato). O detalhe picaresco (ainda existe esta palavra?) é que, à medida que se aproximava a meia-noite de sexta-feira, a “macharada” começava a lotar os salões dos bordéis para esperar o momento de cumprir a tradição seguinte que era a da abertura dos baús.

Tempos idos e vividos. Aí, portanto, curiosas nuances da religiosidade baiana. Quem puder – ou souber – explicar suas origens, favor enviar cartas para a redação, que penhoradamente agradece.

Alcir Santos
Foto: Arquivo Pessoal

Alcir Santos é aposentado e leitor compulsivo. Coisa ele diz: “ex um bocado de coisa”, de office-boy, bancário, professor de História e Direito Civil e Prática Forente a juiz. Colunista da Revista Nova Família

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